dispo-me de mim própria desde que acordo e só volto a ser eu quando me deito. deixo nos lençóis a minha pessoa e enfrento outro dia com uma máscara. tento usar sempre a mesma, a que está mais suja, a que está mais gasta, para não mostrar muitas oscilações. o primeiro grande impacto é quando abro com uma certa lentidão a porta do meu quarto, cuidadosamente, tentando não fazer o mínimo de barulho. incomoda-me, estraga-me o disfarce. a qualquer momento pode sair alguém do quarto ao fundo do corredor, e encontrar-me ainda metade despida, ainda frágil. na casa de banho sou só eu e o espelho. as reflexões, as únicas críticas que levo a peito, as omissões e os pecados não saem daquelas quatro paredes frias. poucas são as que conhecem o meu corpo e as minhas mágoas por completo, tão bem como aquelas brancas-pérola paredes. a água a percorrer-me na cara, lava-me os traços de dúvidas, os traços de preocupação, as rugas de sofrimento, as marcas de risos, alguns forçados. e quando volto a olhar-me, a perfurar o meu próprio denso e escuro olhar, esqueço-me do que fui de noite e concentro-me no que serei de dia. volto-me e abro a porta lentamente, e corro em bicos de pés para o meu quarto, o meu canto em que se encontra o toque final para a minha máscara, a minha armadura estar completa. é difícil escolher a omissão da minha pessoa para cada dia, fico sem alternativas depois de tantas partes de mim escondidas.

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